terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

ENTREVISTA COM O ESCRITOR MARCELO ALCÂNTARA


"A homossexualidade é simplesmente humana"





A publicação “O desejo no Escuro”, de Marcelo Alcântara, lançado em 2013, pela Editora Scortecci, revisita a temática da homossexualidade, a partir da perspectiva e visão de mundo de um jovem rapaz, trazendo toda a complexidade que é se assumir gay num país multicultural, que discrimina pessoas que desejam o mesmo sexo e no qual a homofobia institucionalizada é uma realidade. A narrativa autobiográfica é fluida e nos encaminha às experimentações, aos principais eventos de uma trajetória de superação, de uma vida repleta de desafios.
Residindo em São Paulo, capital, Marcelo Alcântara me atendeu prontamente para uma conversa franca e fez um relato de como surgiu a ideia de contar seu processo de “saída do armário” e de como seu “Desejo no Escuro” veio à luz, para que o mundo conhecesse sua história e servisse de aporte a quem quer que se identifique. Nesse ponto, a obra se aproxima do caráter universal, sobretudo, pelos questionamentos puramente humanos produzidos.

FLAVIO BREBIS. Quanto tempo durou a escrita do livro?
MARCELO ALCÂNTARA. Tirei 30 dias de férias de em julho de 2011 e, sem grana, fiquei em casa. Estando à toa, surgiu em mim uma comichão de botar para fora o sonho de escrever um livro, desconstruindo os tabus sociais da homossexualidade. Sentado da manhã até tarde da noite (algumas vezes varando madrugadas), escrevi o corpo do texto início, meio e fim em um mês. Depois que voltei a trabalhar, só podia escrever de noite, começou o duro processo de limpeza, clareza das ideias e das reflexões contidas no livro, assim como as pesquisa dos dados utilizados no texto. Concluí o livro em dezembro de 2012. Em abril de 2013 ele foi publicado.

F.B. Como foi o processo de construção da narrativa?
M.A. Eu deixava as lembranças virem à tona e, ao transcrevê-las, procurava ser fiel à história como os fatos estavam registrados na memória. Mesmo que remontar a realidade seja uma versão, busquei ser autêntico, honesto e verdadeiro com o meu passado. E sem uma escolha narrativa formal consciente ou imitação de estilos. Meus pais e irmãos mais velhos liam muito e também aprendi a gostar de ler; mas li pouco. Impaciente com leitura, sempre tive dificuldade com narrativas detalhadas, rebuscadas ou prolixas e enfadonhas: perdia o fio da meada. Além disso, a experiência acadêmica me traumatizou com leituras obrigatórias de textos herméticos, que eu lia e relia sem entender quase nada. Ou seja, num mundo urgente como o de hoje, tentei ser claro e objetivo sem perder a sedução. Também tentei, sem conseguir, uma narrativa cronologicamente uniforme. Na verdade, o que eu queria era um 'bate-papo'; estilizado sim, porém, tipo prosa boa. E conversa vai e vem, por mais que tentemos lhe dar uma ordem. Ou seja, a cronologia existe, mas dá saltos propositais porque está em função personagem principal, o único que é criação no livro: a 'discussão sobre a homossexualidade'.

F.B. Que tipos de eventos decidiu selecionar?
M.A. Não decidi selecionar deliberadamente os eventos.  No início, era para ser apenas um livro reflexivo: queria discutir a ignorância social sobre a homossexualidade. A autobiografia foi incidental: automaticamente comecei a enxertar minha história pra ilustrar questões discutidas no livro. Meus bons amigos Zé-Alonso e Kalliopi leram a primeira versão. Entusiasmados, incentivaram-me a destacar minha história, afirmando ser o melhor do livro. A partir daí, deixei minha trajetória vir à tona como isca para seduzir o leitor a mergulhar inconscientemente, mais desarmado, na reflexão sobre a 'homossexualidade'. Conseguir que qualquer ser humano pudesse refletir, “entrar” na pele do semelhante “diferente”, era a minha maior ambição. Então, os eventos de minha trajetória não eram propriamente escolhidos para o livro: tentavam respeitar uma cronologia e também surgiam de acordo com o tema da homossexualidade a ser discutido. Repetindo, por mais que pareça coadjuvante, o protagonista da história é a questão da 'homossexualidade'. Os fatos de minha vida ali servem de alimento para manter a curiosidade humana acesa. E, ao mesmo tempo, convidar a sociedade “normal” a uma reflexão sobre as “diferenças” humanas.

F.B. Houve algum tipo de censura?
M.A. De certo modo, sim. Eu buscava uma leitura universal, que humanizasse o homossexual, mas que não fosse direcionada a um público específico: queria que servisse à sociedade inteira. Durante a escrita, elegi minha avó Socorro como leitora modelo. Mas, prática natural, jamais excluiria a sexualidade e o sexo homossexual pra ser bem visto e aceito na leitura da sociedade “normal”. Me preocupei sim em como dizer as coisas, pois a intenção não era chocar nem agredir. É por isso que as descrições de sexo homossexual estão muito presentes no livro, mas não de modo chulo, explícito ou desnecessário. Recebi uma crítica de um homossexual dizendo que o livro poderia ter sido mais 'picante'. Discordo: o erotismo gay não era o foco do livro. Por outro lado, também tive o cuidado ao falar de pessoas públicas, como o Papa Bento XVI, e de instituições religiosas ou políticas. Alguns indivíduos desses grupos poderosos ousam detonar a homossexualidade na mídia sem medir as consequências. Mas eu, reles funcionário público, moro num país perigoso para os “normais” viverem, que dirá pra um homossexual. No mais, é sabedoria apreendida com a vida: penso que a agressividade bloqueia a razão e expande nossa irracionalidade. Exemplo bacana, uma evangélica leu meu livro e me deu um retorno positivo e humanizado que me tocou profundamente. Minha natureza é de paz, acredito no poder palavra branda e racional para combater o fundamentalismo que enxergo se avolumar a cada dia na sociedade brasileira.

F.B. Como chegou ao título “Desejo no escuro”?
M.A. Eu elaborei aproximadamente dez títulos para o livro. A grande maioria continha as palavras 'desejo' e 'escuro'. Mostrei a lista para o meu grande amigo Zé-Alonso e, em menos de um minuto, ele cruzou dois títulos e chegou a um intermediário: “O desejo no escuro”. Fiquei com inveja e feliz ao mesmo tempo. Inveja por não ter enxergado esse título sozinho e feliz porque era exatamente o que eu procurava: os pés da capa são o meu e o do “Mateus”, meu parceiro há 11 anos, numa viagem em 2007 em que éramos muito enrustidos. Durante a travessia de 'chalana' para a paria de Carneiros-PE, ele afagou meu pé dando um jeito de me fazer um carinho clandestino. Sempre com a máquina na mão, bati a foto na hora. Acabaria escolhendo a foto como capa do livro. Eu a escureci daquele modo no Photoshop, a imprimi, pintei as tiras de verde e de azul com lápis de cor e bati uma foto da foto. Dois pés masculinos no escuro, acariciando-se, representando a homossexualidade enrustida e o desejo reprimido, o nome “O desejo no escuro” serviu como uma luva.

F.B. Quanto de autobiográfico e quanto de ficção há na narrativa?
M.A. Sou literal, não sei se teria capacidade para criar histórias e personagens verossímeis, o que me limita para escrever ficção. A narrativa de 'O desejo no escuro' é toda autobiográfica: só precisava relembrar o passado e escrever as vivências com aquelas pessoas. E procurar descrever e narrar com fidelidade os fatos como ficaram registrados em minha memória. Então, nem fatos ou personagens criados, são pessoas vivas e acontecimentos reais de minha vida. Com exceção de meus familiares, o que tem de inventado são os nomes dos personagens: dei um codinomes, sintetizando uma característica da maioria (exemplo: Tomás = gêmeo; Conrado = conselheiro prudente). Para proteger o anonimato de meus amigos “Tomás” e “Conrado”, dois homossexuais enrustidos descritos no livro, algumas características físicas do “Tomás” foram camufladas. Já “Conrado”, preferi descrevê-lo superficialmente por não conseguir driblar suas características. Há 17 anos, até onde soube, Tomás era casado com mulher e pai de família. E sei que “Conrado” se casou, tem 3 filhos e é um pai de família dedicado. Tenho consciência de que causaria um grande transtorno em suas vidas se eu deixasse pistas claras de quem são.  Ou seja, as histórias são verídicas: os codinomes e descrições físicas pouco detalhadas foi o modo que encontrei de proteger as pessoas reais, que no livro viraram “personagens”.

F.B. Como você pensa que “O desejo no escuro” pode ajudar pessoas a saírem do “enrustimento”?
M.A. Assumir-se é um processo íntimo e pessoal. Acredito apenas que minha história possa servir de referencial positivo para homossexuais mal resolvidos ou que vivem em qualquer espécie de armário, mesmo àqueles que se acham assumidos, mas mantém restrições em suas vidas cotidianas. Na verdade, escrevi o livro que gostaria de ter lido, quando descobri aos 19 anos que eu era homossexual. Espero que possa ajudar as pessoas a serem elas mesmas.

F.B. A sua trajetória de superação o transformou em ativista em defesa dos direitos humanos e de que forma?
M.A. A minha atuação em defesa dos direitos humanos é a vivência franca, meu respeito sagrado às diferenças, minha busca de existência livre, íntegra, inteira. Assim como a ousadia de vencer o medo de minha coragem: minha saída pública do armário social coincidiu com o lançamento do livro, e, sete meses depois, lá estava eu bombasticamente relançando o livro em meu local de trabalho, na Semana Cultural do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP). Obrigaram-me a falar em público e lá fui eu, na frente de todos, anunciar que eu era homossexual, que o livro falava sobre preconceitos e estereótipos da homossexualidade. E as pessoas de queixo caído com a minha tal coragem. Ou seja, não tenho um modo formal de ativismo e meu exemplo é a prática. Sou meio “bicho do mato” e ruim para encontrar canais para atuar. Mas escrevi um livro que abrange os direitos humanos e estou aberto a novas experiências.

F.B. Na sua narrativa, você fala em pessoas que se comportam como 'heterossociais'. Como o seu livro pode ajudar homossexuais a se reconhecerem e superarem essa fase, caso desejem?
M.A. No livro, eu caracterizo como heterossocial o homossexual que se esconde sob a máscara de heterossexual por não tolerar sua realidade e o ônus de ser gay em uma sociedade que segrega os “diferentes”:  para eles, ser gay seria como virar um cidadão de segunda categoria. Os graus de fugas da homossexualidade são complexos e só depende do sujeito, dentro de si mesmo, encontrar a saída para romper com uma existência falsa, fingida, fictícia. Em meu caso, sempre tive uma relação visceral com a verdade, com a minha verdade; ou seja, seria impossível, para mim, ter seguido a farsa da vida dupla, me casado com uma mulher para usá-la como escudo social. Creio que romper com tudo isso é um processo individual. O livro não tem poder de mudar alguém. Talvez, quem sabe, ao menos possa despertar esperança e coragem nos enrustidos.

F.B. Quando e como você decidiu que ia transformar experiências pessoais em um livro?
M.A. Foi por acaso. Há dez anos que pensava em escrever um livro reflexivo sobre a ignorância e estereótipos sociais da homossexualidade. Na hora em que decidi colocar minhas experiências pessoais, elas foram naturalmente se incorporando ao livro apenas durante o processo de escrita em julho de 2011.

F.B. Como você pensa que homossexuais podem se identificar com sua narrativa?

M.A. Tal identificação pode acontecer de infinitos modos. Eu narro a história do ponto de vista, como digo no livro, da 'gaveta mais oculta do armário homossexual': a heterossocialidade. Ou seja, é o olhar de um homossexual agudamente enrustido, do tipo que costuma fugir de sua verdadeira orientação sexual e se adequar ao mundo dos “normais”, casando-se com mulher, tendo filhos. Contudo, creio que nem é preciso ser homossexual para se identificar com o livro: qualquer pessoa pode se enxergar em “O desejo no escuro”, porque não é um livro apenas sobre a questão gay. Na verdade, traz a temática do “respeito às diferenças” e do processo de amadurecimento humano, de assumir-se por inteiro nessa existência, de buscar ser 'si mesmo' em plenitude. E tudo isso é universal; simplesmente humano.

2 comentários:

  1. Mesmo sendo autobiografico ele conta a história de uma geração, que não é como a minha que em muitos casos aceita a homossexualidade com alegria e inclusão social até. Eu sou suspeita para falar do livro mas devo dizer que a linguagem, o fluxo dos acontecimentos me pegou pelo pescoço, eu lia sem parar e me identificava com o vermelho vivo do livro; que é o desejo.

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  2. Danê, foi a mesma sensação que tive. Libertei-me no tempo certo, penso. Com 18 anos fiz questão de o mundo saber da minha homossexualidade. Entretanto, identifico-me com a história de Marcelo Alcântara, por isso propus esta entrevista. Espero que os meus questionamentos que fiz ao autor-personagem possam ajudar as pessoas a entenderem o processo...

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